Crítica de A CULPA por Ruy Filho

Leia abaixo a crítica do espetáculo, escrita pelo pesquisador teatral Ruy Filho, de São Paulo. Ele foi ao Festival de Curitiba, o maior festival de teatro do país, a convite da organização, e assistiu nosso espetáculo na Sala Londrina.


Foto: Emi Hoshi


Kafka. Não tem muito como começar uma reflexão, sem dar a devida importância ao artista. Sim, artista, pois sua criação invade tantas linguagens, que é pouco reduzí-lo à escritor. Ao teatro contemporâneo, suas propostas introduziram a pertinência de estruturas narrativas diferenciadas, fugas do naturalismo e o redimensionamento da ideia de sujeito. Na sua fundamental Carta ao Pai, o artista trata de tudo aquilo que lhe foi imposto, renegado, destruído por aquele que lhe deveria fornecer exatamente o oposto, e acaba por gerar uma curta, porém colossal, obra sobre a humanidade. Luiz Carlos Cardoso opta por trazer à cena um homem, talvez Kafka, como coloca em dúvida na sinopse, em circunstância comum. Mesclando texto e um trabalho corporal eficiente, a narrativa se desenvolve na tentativa de ampliar a percepção do autor durante a escrita de sua carta. Por um lado, o espetáculo exibe com obviedade o acontecimento espalhando papéis pelo chão e atuando de forma naturalista o tempo da escrita em representação gestual. Fica de fora, a ausência de gênese típica do universo kafkaniano, o que poderia ser um ganho estrutural ao espetáculo e, sobretudo, à linguagem teatral utilizada. Todavia, o encantamento com o Kafka personagem domina o espetáculo. Escolha comum nesse tipo de narrativa, onde, quase sempre, fixa sobre a personagem escolhida seus argumentos, ao inves de torná-lo arquetípico, o que levaria o espectador a desenvolver uma vontade de assistir o objeto de estudo ser apropriado e não apenas representado. No caso de A Culpa, ser ele a ambiência de sugestão da cena e não sua personificação literal. Mas com saídas possíveis. A direção de Carlos Ola aponta um excelente caminho. Assistir ao espetáculo na projeção da sombra da cena que se realizava, projetada sobre as paredes laterais, ofereceu o tom misterioso e melancólico kafkaniano de modo mais experiencial. Havia nos desenhos ampliados em negro a identidade diluída por um instante indizível de dor e solidão; o surgir de um espaço menos real para a sugestão de um lugar possível de ser também o próprio interior do personagem. O bom trabalho de Luiz Carlos sustenta o intercalar entre o mergulho e o previsível. Mas deixa em aberto se não caberia a possibilidade de irem mais a fundo na intenção original. Afinal, o que acharia Kafka ao se ver, paradoxalmente, retratado tão respeitosamente?


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