um mergulho no inconsciente - crítica do escritor Anaximandro Amorim para o espetáculo a culpa

Um ambiente estreito e escuro. Várias folhas de papel, muitas, amassadas, jogadas no chão. Duas cortinas brancas, nas extremidades do palco. Atrás de uma delas, vê-se, com certa nitidez, um jovem homem, vociferando em alemão (ou algo que o pareça). O cenário claustrofóbico, que quer convidar o espectador a um mergulho no inconsciente de um escritor, é o pano de fundo de “A Culpa”, monólogo do “Grupo Anônimos de Teatro”, que tem no palco o ator capixaba Luiz Carlos Cardoso, durante, aproximadamente, 45 eletrizantes minutos.

“A Culpa” é um espetáculo baseado na obra “Carta ao Pai” (1919), do autor tcheco Franz Kafka (1883 – 1924). Para quem não conhece muito bem, Kafka se expressava tanto em tcheco quanto em alemão, elegendo esse como o idioma dos seus escritos. Pequeno, franzino e introvertido, formou-se em Direito e empregou-se na burocracia bancária, sem jamais ter visto a publicação de seus livros. Seu pai, o comerciante judeu Hermann Kafka, um homem robusto e opressor, teve grande influência na escrita do filho.

“Carta ao Pai”, antes de uma missiva familiar, é em uma peça literária. O texto, verdadeira catarse, em que o autor se queixa sobre/com seu genitor, usa adjetivos como “tirano”, “déspota” e congêneres. “A Culpa” se baseia em um aspecto específico do texto, o homônimo, explorando as arestas de uma relação conflituosa: de um lado, o filho que luta para ser reconhecido como tal, provando virtudes despercebidas pelo pai; e este, do outro, justificando-se, querendo comprovar que, a despeito dos seus limites, fizera tudo pelo bem do filho.

Luiz Carlos Cardoso é um show à parte. O jovem ator de trinta anos se debate, se contorce, muda de voz e personalidade, desdobrando-se em dois: pai e filho. Ele usa de todos os cantos do palco e até alguns fora dele. Há truques de iluminação e uma trilha sonora de violinos em dissonância, o que ajuda no clima cerebrino da peça. É como se estivéssemos na cabeça de Kafka ou de Cardoso que, em um dado momento do espetáculo, despe-se do personagem, interpretando a si próprio, num jogo entre fantasia e realidade, mostrando que a culpa é um dilema do humano e que Kafka pode ser qualquer um de nós.

“A Culpa” tem direção de Carlos Ola, que também opera a luz. O som é por conta de Neuza de Souza. A adaptação textual é do próprio Luiz Carlos, seguramente, um dos melhores atores da sua geração, aqui no Espírito Santo. Um espetáculo perturbador, que nos faz pensar em todas as questões daquele “Mal estar da civilização” freudiano, em que barganhamos nossas pulsões. Uma peça para poucos. Um privilégio para aqueles que conseguirem captar o “demasiado humano” por trás de uma montagem acertadamente intimista e delicada.

Anaximandro Amorim é advogado e escritor, membro da Academia Espírito-Santense de Letras.

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